Cidadania italiana: a decisão da Corte Constitucional que pode mudar tudo
A reforma da cidadania italiana aprovada em 2025 está no centro de uma disputa jurídica que interessa milhões de descendentes de italianos no mundo, especialmente no Brasil. A chamada “Riforma Tajani” (Decreto‑Lei nº 36/2025, convertido na Lei nº 74/2025) alterou profundamente o ius sanguinis, princípio secular segundo o qual a cidadania se transmite por descendência. Antes, a lei de 1992 permitia a transmissão sem limite de gerações; bastava comprovar a linha genealógica. Com a nova legislação, isso mudou radicalmente.
O que diz a nova lei italiana (DL 36/2025 e Lei 74/2025)
O Decreto‑Lei n. 36/2025, promulgado em 28 de março e convertido na Lei n. 74/2025 em 23 de maio de 2025, pretende “temperar” o ius sanguinis sem eliminá‑lo. A motivação oficial é evitar abusos e ligar a cidadania à existência de vínculos efetivos com a comunidade nacional. As principais mudanças são:
Limite de duas gerações
Agora só podem ser reconhecidos como italianos os filhos ou netos de cidadãos italianos que não tenham perdido a cidadania antes do nascimento do descendente. Bisnetos e gerações seguintes, que antes poderiam requerer a cidadania, ficam excluídos.
Nascidos no exterior com outra cidadania
O art. 1, § 1 determina que nascidos no exterior com outra nacionalidade de origem não adquirem automaticamente a cidadania italiana. Isso vale inclusive para quem nasceu antes de a lei entrar em vigor. Há exceções, nas quais permanece a disciplina anterior:
- Se o status de cidadão já havia sido reconhecido ou havia agendamento de apresentação da documentação até 27 de março de 2025;
Se o pedido judicial de reconhecimento foi apresentado até essa data;
Se um dos pais ou avós possuía somente a cidadania italianaintegrazionemigranti.gov.it;
Se um dos pais ou adotantes residiu legal e continuamente na Itália por pelo menos dois anos após adquirir a cidadania e antes do nascimento do filho. - Aquisição para menores: os §§ 1‑bis e 1‑ter preveem que menores estrangeiros ou apátridas filhos de italianos só se tornam cidadãos se os pais declararem vontade de aquisição e se o menor residir legalmente por pelo menos dois anos na Itália. A declaração também pode ser feita no primeiro ano de vida do menor; ao atingir a maioridade, ele pode renunciar à cidadania italiana.
Limites probatórios
Em processos de reconhecimento, a lei proíbe o uso de juramento e de prova testemunhal, salvo hipóteses específicas, e transfere ao requerente o ônus de provar a inexistência de causas de perda ou de não aquisição da cidadania.
Entrada para trabalho e naturalização facilitada
O § 1‑bis permite que descendentes de italianos, cidadãos de países com forte emigração italiana, obtenham visto de trabalho fora das quotas de imigração
O § 1‑bis, § 2 reduz de três para dois anos o tempo de residência legal exigido para naturalização de estrangeiros cujo pai ou avô seja italianointegrazionemigranti.gov.it.
Riacquisição da cidadania
O art. 1‑ter abre uma janela até 31 de dezembro de 2027 para que ex‑cidadãos nascidos ou residentes há pelo menos dois anos na Itália recuperem a cidadania perdida pelas regras da lei de 1912.
Por que a reforma é controversa
A aprovação da lei gerou críticas de juristas e associações de descendentes. A advogada Celeste Martinez Di Leo, citada pelo escritório Canella Camaiora, observa que o decreto mudou a natureza do reconhecimento: de ato declarativo de um direito já existente para um mecanismo seletivo sujeito a novos requisitos. Entre os principais pontos contestados:
- Retroatividade: o governo argumenta que as novas regras se aplicam também a processos em andamento, o que contraria o princípio de irretroatividade das leis. O Tribunal de Campobasso rejeitou essa interpretação, afirmando que a lei não tem efeito retroativo e que os direitos adquiridos antes de 27 de março de 2025 devem ser preservados.
- Uso de decreto‑lei: especialistas italianos, como o jurista David Manzini, criticam o uso de um decreto‑lei – instrumento reservado a situações de urgência – para reformar um tema estrutural. Eles consideram que não havia urgência e que o governo deveria ter proposto um projeto de lei ordinária.
- Limites geracionais e vínculo efetivo: muitos descendentes criticam o critério de “legame effettivo”. Para eles, exigir residência na Itália ou vínculos fortes contradiz a tradição do ius sanguinis.
A sentença 142/2025 e seus efeitos
Antes mesmo da reforma, tribunais italianos questionavam dispositivos da lei nº 91/1992 que permitiam a cidadania ilimitada por sangue. Em 31 de julho de 2025, a Corte Constitucional proferiu a sentenza n. 142/2025, relativa à lei antiga. A Corte declarou inadmissíveis a maior parte dos questionamentos e considerou que cabe ao parlamento definir os critérios de cidadania. A decisão produziu efeitos práticos:
- Processos já iniciados sob a lei de 1992 continuam sem limites geracionais;
- Novos pedidos, apresentados após 27 de março de 2025, devem cumprir os requisitos da reforma;
- Futuro contencioso: a Corte sinalizou que os próximos processos devem discutir a constitucionalidade e a interpretação da Lei 74/2025.
A sentença não analisou a reforma porque ela não era aplicável aos casos sob julgamento, mas suas premissas influenciarão a decisão sobre o novo decreto.
Como a questão chegou à Corte Constitucional
Diversos tribunais italianos, entre eles o Tribunal de Torino, consideraram legítimos os argumentos de inconstitucionalidade do decreto. A decisão do tribunal de Turim foi publicada na Gazzetta Ufficiale em 17 de setembro de 2025, marco que deu início ao processo constitucional. O questionamento principal é se a reforma viola a Constituição ao restringir a cidadania por descendência, aplicar efeitos retroativos e utilizar um decreto‑lei para modificar uma matéria estrutural.
O rito processual: o que acontece agora?
O site Italianismo compilou os passos do procedimento diante da Corte Constitucional. Os prazos são rigorosos e foram fixados pela Corte:
- Memoria di costituzione (defesas escritas): as partes têm 20 dias para apresentar seus argumentos. Terceiros interessados, como associações, podem intervir nesse período.
- Designação do juiz relator: um juiz é escolhido para relatar o caso. Ele elabora um relatório com fatos e fundamentos jurídicos, lido na audiência pública.
- Audiência pública: advogados e a Avvocatura dello Stato apresentam oralmente suas teses; os demais juízes podem fazer perguntas.
- Memória final: até cinco dias antes da audiência, as partes podem protocolar alegações finais ou respostas às manifestações adversas.
- Deliberação e decisão: após a audiência, os juízes se reúnem em sessão privada; o acórdão é publicado na Gazzetta Ufficiale e tem efeito geral (erga omnes).
O julgamento deve ocorrer entre fevereiro e março de 2026. Caso a lei seja declarada inconstitucional, a decisão terá efeito vinculante e poderá restaurar o direito à cidadania para milhões de descendentes; o parlamento italiano teria de rediscutir o tema.
O que está em jogo para os ítalo‑descendentes
Para brasileiros com ascendência italiana, a decisão da Corte será crucial. Eis alguns cenários:
- Se a lei for mantida: os descendentes que não se enquadrarem nas exceções terão de buscar outras formas de obtenção da cidadania, como residir legalmente na Itália por dois anos (para netos) ou três anos (para cônjuges). A naturalização “facilitada” pode ajudar quem tem recursos para se mudar e trabalhar no país.
- Se a lei for derrubada: volta a valer a transmissão ilimitada por descendência. Processos suspensos poderiam ser retomados, beneficiando quem descende de bisavós e trisavós.
Possibilidade de ajustes: mesmo que a Corte anule apenas as normas retroativas, o parlamento poderá propor uma nova reforma equilibrada, preservando direitos adquiridos e exigindo algum tipo de vínculo cultural.
Como se preparar
- Quem já tem processo iniciado até 27 de março de 2025 deve manter a documentação em ordem; a reforma não atinge esses pedidosintegrazionemigranti.gov.it.
- Descendentes que pretendem aplicar devem reunir certidões e avaliar se têm direito nas condições atuais (por exemplo, se o avô ou avó mantiveram apenas a cidadania italiana ou se um dos pais residiu na Itália por dois anos.
- Acompanhar notícias oficiais: consulte portais do governo italiano, como integrazionemigranti.gov.it, que explica as novas regras e exceções.
- Buscar assessoria especializada: advogados italianos podem orientar sobre medidas judiciais e alternativas (naturalização, residência, reaquisição da cidadania etc.).
Conclusão
A reforma de 2025 representa a maior mudança nas regras de cidadania italiana em décadas. Ela introduz limites geracionais e exige vínculos concretos com a Itália, contestando o princípio tradicional de transmissão ilimitada do ius sanguinis.
A constitucionalidade dessas restrições será decidida pela Corte Constitucional no primeiro semestre de 2026, num processo que poderá redefinir o direito de milhões de descendentes de italianos. Até lá, é fundamental que os interessados se informem, preparem sua documentação e acompanhem de perto os desdobramentos desta importante disputa jurídica.
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